Esperanto - A língua sem pátria Cem anos de resistência
Como o Esperanto, o idioma artificial mais difundido no mundo, ainda luta para conquistá-lo
Mônica Manir
Em março de 1906, o professor João Keating coordenou a criação do primeiro clube de esperanto do País, em Campinas. Ele fechou em 1920, mas outros tantos vieram atrás. Hoje são cerca de 200 entidades no Brasil dedicadas à perpetuação e divulgação da língua.
Esperanto vivas!
Um cético diria que Elvis também não morreu. Mas o fato é que o esperanto, língua criada por um judeu polonês em 1887, continua na boca do povo. Bem verdade que um povo de milhares, que a Associação Universal de Esperanto (UEA) estima em 10 milhões e os mais entusiastas em quatro vezes isso. Sob a perspectiva de uma língua universal, que seria falada por todas as nações, é número raso. Mas, sob o ângulo de um sistema planejado, que sobrevive há mais de século sem pátria nem divisas, ele tem tido sua cota de notoriedade. Saddam Hussein, quando não habitué de tribunais, expulsou do Iraque o único professor de esperanto por se sentir ameaçado pelo idioma. Correm na internet mais de 3 milhões de páginas em esperanto ou com trechos dele (o Google tem uma barra de busca dentro de um dicionário), cerca de 30 mil livros já foram editados, a UEA tem 165 títulos de CDs à venda. E transcorre no Brasil a comemoração de 100 anos do primeiro clube nacional da língua, o Suda Stelaro (Cruzeiro do Sul), criado em Campinas, interior de São Paulo.
O pai da língua, o judeu polonês, era o oftalmologista Ludwig Lejzer Zamenhof. Consta que a idéia de entabular um idioma neutro nasceu de mal-entendidos. Na sua cidade natal, Bialistoque, que vivia sob o jugo do Império Russo, o pau quebrava feio devido à grande quantidade de idiomas na região. Daí ele ter criado um projeto, depois transformado no livro Internacia Lingvo de Dokotoro Esperanto - Língua Internacional do Doutor Esperanto, pseudônimo que significa "aquele que espera". Pois então, o projeto de Zamenhof consistia num arcabouço que, muito depois, Umberto Eco classificaria como "uma língua muito bem-feita, que segue o admirável critério de economia e eficiência do ponto de vista lingüístico". Um chamariz são as poucas características e regras normativas. Somam 16, entre elas a ausência de artigos definidos e indefinidos, o verbo invariável em pessoa e número, o acento tônico na penúltima sílaba (todo o mundo esperantista com mais de uma sílaba é paroxítono), adjetivos terminados em "a", substantivos em "o", advérbios em "e", ausência de letras mudas. Cada uma, aliás, tem um único som e a cada som corresponde uma única letra. O "x", o "w", o "q" e o "y" dançaram.
Não foi à toa você ter entendido, no início, que o esperanto vive. Ele tem cerca de 60% de raízes latinas, mais 30% de anglo-germânicas e 10% de eslavas. A não ser que se esteja gripado, ninguém precisa falar o idioma pelo nariz ("não" é ne), e o uso constante das cinco vogais bota som na caixa. Soa como um italiano muito bem pro-nun-ci-a-do, levemente temperado com polonês. "É uma língua planejada a posteriori, aproveitando o que já existia em outras", lembra Jimes Milanez, professor de esperanto e membro do Kultura Centro de Esperanto (KCE), em Campinas. Tolstoi afirmou categoricamente que bastaram seis horas para que ficasse craque no esperanto. Os mais pés-no-chão, gente como a gente, demoram em torno de seis meses para dominá-lo.
Há quem diga (e um deles foi Reinhard Selten, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1994) que o esperanto abre caminho para outras línguas. Nessa linha, se você criasse desenvoltura no "tre bone, dankon" (muito bem, obrigado), acabaria se virando com mais agilidade da Groenlândia ao Chuí... A missão maior desse idioma, porém, é ser pan, universal, flanar acima das fronteiras, ser a segunda língua, a mãe de leite da materna. "O esperanto é como um Linux da vida", compara o também analista de sistemas Jimes. Ainda assim, tem quem o associe a uma religião ou outra. No Brasil, chegou a receber o rótulo de "coisa de espírita". Como muitos seguidores dessa religião o consideram a língua do terceiro milênio, que unirá as pessoas no ideal de fraternidade, editam obras e mantêm no site da Federação Espírita Brasileira uma versão do conteúdo em esperanto. Pois não é que um grupo de evangélicos desistiu de um dos cursos oferecidos na Capital mal soube que o dicionário era editado pela Federação? Talvez o nome do autor na capa tenha contribuído para a diáspora: Allan Kardec Afonso Costa.
Por quê, então, apesar de tanta desenvoltura e princípios nobres, o esperanto não deslancha? "Para ser universal, o esperanto não pode sofrer alteração, mas é impossível represar uma língua", afirma Izidoro Blikstein, professor de Semiótica da Universidade de São Paulo e de Comunicação Empresarial da FGV. Pelo uso, explica ele, o esperanto sofreria deslizamentos ou alterações semânticas, incorporaria metáforas e metonímias, e isso degringolaria o projeto de um idioma regular para todos. O caráter "messiânico" também é criticado. "Imaginar que as línguas servem para a comunicação clara entre as pessoas é ignorar sua opacidade, sua falta de transparência natural", afirma Eduardo Guimarães, professor de Semântica do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Ok, então expliquem a disseminação transatlântica do inglês. "O dólar", aponta Guimarães. Nas palavras de Blikstein, o inglês virou língua de sobrevivência no comércio e na academia, mas também não está imune a interferências. "Não temos um, mas uma miríade de ingleses", diz. Como muitos lingüistas do País, talvez a maioria, nenhum dos dois conhece o esperanto de perto.
Para Marcos Zlóv Zlotovich, que deu aula de esperanto por 15 anos e hoje tem uma escola de línguas que não o ensina, uma das questões que seguram o freio de mão dessa língua é que ela ainda depende do ensino fora de casa. Os esperantistas, em geral, não passam o idioma para os filhos e, quando o fazem, os guris não seguram por muito tempo a informação. Afinal, na escola, entre os amigos, no futiba, na esquina, ninguém (ou praticamente ninguém) entende o que dizem. "Ela depende, portanto, de programas didáticos bem estruturados, mas o material didático é sofrível, os professores voluntários, as aulas maçantes", diz Zlóv, exibindo a estrela verde com a letra "E", símbolo do idioma, num broche do lado esquerdo do peito.
O analista de sistemas James Rezende Piton estava sem o broche no dia da entrevista - ele e a mulher, a psicóloga Isis Climany Okabe Piton. Por questão de segurança, talvez. Jean, de 3 anos, e Molina, de 7 meses, se revezavam no colo de um e de outro. Aos dois, desde a barriga, os pais falam em esperanto e português. São dos poucos que acham que santo de casa faz milagre. A língua fez a graça de uni-los num encontro de esperantistas em Campos do Jordão, em 1997. Casaram em 2001, com o pacto de sangue de passar o idioma como herança. "Há casais que falam esperanto entre si, e apenas entre si, para os filhos não entenderem o que dizem, mas no nosso caso é o contrário", sorri James. À pergunta sobre a utilidade dessa educação bilíngüe, ele responde que o idioma lhe deu acesso a vários países. Visitou 18 deles, a maioria na Europa, e foi a comunidade esperantista quem, no vamos ver, lhe abriu os segredos de cada um. "Para quem pode viajar, é um trunfo."
Nessas duas últimas semanas, James organizou uma exposição de cartões-postais na Biblioteca Central César Lattes, na Unicamp, como parte dos parabéns à criação do Suda Stelaro. O postal foi aceito como meio de comunicação internacional em 1902, quase contemporâneo portanto ao esperanto. A proposta de James é usar os cartões para ilustrar a história da língua, as curiosidades dos clubes, a perseguição aos falantes (Stalin mandou para a Sibéria vários pares deles, Hitler acusou o esperanto de ser usado pelos judeus para "dominar mais facilmente" e os congressos, sempre anuais, foram censurados durante as duas guerras). Se os postais correram mundo divulgando a língua, hoje são os e-mails que levam sua mensagem multicultural. "A internet traz um futuro auspicioso para o esperanto", prevê Zlóv. Quando os lingüistas apontam a falta de densidade histórica como um problema para essa língua virar febre, os esperantistas assumem seu caráter transgênico sem pudor. O esperanto, afirmam, absorve e compartilha a cultura de todos, dando acesso ao que os praticantes de cada país consideram de melhor em sua literatura, por exemplo. É comum encontrar antologias nacionais em esperanto, e sua flexibilidade e precisão dariam chance a traduções fiéis. Na voz de Guimarães Rosa, "é essa língua, de grande simplicidade e rara beleza, que está naturalmente predestinada a veicular e divulgar as obras literárias no futuro".
(Jornal da Tarde, Alias, 26/03/2006)